Category Archives: anarquia

Falem mal mas falem de mim


Fomos demasiado maltratados nos últimos meses pela imprensa, mas ganhamos um argumento valioso que agora podemos usar: somos os que mais assustamos, somos os desobedientes, os que verdadeiramente confrontam a ordem instituída. Nos próximos tempos podemos inverter o efeito da campanha terrorista mediática entre aqueles que tenham em si ainda alguma semente de revolta. À nossa escala e dentro das nossas possibilidades actuais, mas não podemos deixar escapar a “publicidade” gratuita que nos deram. Não somos um grupelho político violento ansioso por obter atenção e poder. Somos a expressão visível dos mais apaixonados sentimentos de solidariedade e revolta. Rejeitamos tomar o poder, rejeitamos as hierarquias, rejeitamos que nos ponham a mão em cima. Só queremos ser livres. E como nós há muitos por aí, que de momento até podem não querer levantar a bandeira negra, mas podem estar connosco nas lutas.

[somos] “Os radicais dos radicais – os gatos pretos, o terror de muitos,
de todos os intolerantes, exploradores, charlatães, falsos e
opressores. Consequentemente somos os mais injuriados, deturpados,
incompreendidos e perseguidos de todos.” Bartolomeo Vanzetti

Pôr o dedo na ferida

«Todas estas possibilidades, em aberto, para nossa intervenção, estão condicionadas pela capacidade de nos articularmos e associarmos, já que só movimentos sociais organizados têm condições para transformar qualquer situação social. Nossa fragilidade organizativa: incapacidade de associação e coordenação em cada região e mais ainda internacionalmente, são por demais evidentes para não serem vistas como um dos problemas chaves do que genericamente chamamos de movimento libertário. Não se solucionando isto, será impossível qualquer ativismo profícuo, qualquer resultado duradouro para a nossa militância ou a transmissão de uma cultura libertária entre gerações. Por essa razão podemos afirmar que, de forma imediata, teremos de encarar a questão da associação, articulação e coordenação de nossas práticas. O que passa também pela clarificação do papel da organização libertária, que é, antes do mais, o de criação de um espaço coletivo, livre e fraterno, onde se forjem novas relações sociais e se viva de acordo com os valores da cultura libertária, como aconteceu no passado quando “os trabalhadores e os pobres não estavam nem de longe tão isolados e nem submetidos ao monopólio ideológico da mídia dos negócios.” Foi por isso que a esperança e a utopia se reproduziam nesses espaços libertados onde viviam os excluídos. É esta uma das funções que temos de recuperar para as associações libertárias, ao mesmo tempo que se assumam como um núcleo de difusão das idéias anarquistas e de articulação da luta de resistência anti-capitalista.
As formas concretas de associação podem ser diversas, das organizações anarco-sindicalistas, às federações de grupos de afinidade, das redes de informação, às associações de ateneus e centros de cultura. O fundamental é federalizar e coletivizar práticas e experiências isoladas, ampliando assim as possibilidades de intervenção social. A ruptura com o isolamento e o individualismo do cidadão-consumidor-espectador – papel que o Sistema nos quer impor – é o passo mais decisivo no caminho da reconstrução do espaço coletivo da alternativa social.
Só através de um associativismo libertário que respeite a autonomia, singularidade e diferença entre cada indivíduo ou grupo, mas que seja capaz de potencializar, acima de tudo, o que temos em comum, fundamento de qualquer relação de afinidade, solidariedade e apoio mútuo, poderemos criar uma dinâmica nova no movimento e concretizarmos de imediato as formas organizacionais que propomos para a sociedade.
Este é o modelo reconhecido por qualquer anarquista, mas que tantas vezes negamos ao adotar posturas dogmáticas e arrogantes, confrontos personalizados, criticismos inconseqüentes, resultantes do descomprometimento com a ética anarquista. Essa ética que nos leva a exigir uma adequação dos meios aos fins um ponto importante da nossa crítica ao socialismo autoritário deve assumir um papel central na militância libertária, condicionando imperativamente nossa prática social. Uma realidade em que estão presentes tensões permanentes, resultantes das pressões do meio social, da introjeção dos valores dominantes e das limitações pessoais, mas que será sempre o critério determinante para a avaliação da coerência de cada um de nós. A ética anarquista e os valores libertários tornam-se, assim, pontos da ruptura radical com as ideologias autoritárias, constituindo a mais profunda clivagem com o socialismo autoritário. A rebeldia, a transformação social só podem ser um produto da vontade livre de sujeitos autodeterminados e solidários vivendo dentro de uma dada realidade histórica e social. Jamais produto das condições materiais de produção. Essas sempre potenciarão a maximização da alienação e da sujeição.»

Excerto de O Anarquismo Hoje, de António Sousa

Saul Newman sobre o anarquismo pós-estruturalista

Saul Newman é um académico que se tornou conhecido nos meios radicais por ser um dos principais teoristas do pós-anarquismo, abordagem que pretende ser a justaposição da crítica pós-estruturalista de, entre outros, Michel Foucault e Gilles Deleuze, às possibilidades de resistência e transformação social do anarquismo clássico. Este projecto apareceu inicialmente e desenvolveu-se, entre outros trabalhos com menos impacto, com o livro de Todd May The Political Philosophy of Post-Structuralist Anarchism, em 1994, seguido do livro de Saul Newman From Bakunin to Lacan: Anti-Authoritarianism and the Dislocation of Power, em 2001, e do livro de Richard Day Gramsci is Dead: Anarchist Currents in the Newest Social Movements, em 2005.

Este é um artigo de Newman de 2003, publicado inicialmente no Institute for Anarchist Studies, agora traduzido para português pela Conspiração Anti-cultural Universidade Invisível e colocado no Indymedia brasileiro, ao qual dei alguns retoques. Não subscrevo tudo o que aqui é dito, nem em outros trabalhos dentro do pós-anarquismo, mas são sem dúvida contribuições importantes para o anarquismo contemporâneo. O termo pós-anarquismo é bastante infeliz, pois não se trata de ir para além do anarquismo, nem sugerir que o anarquismo se encontra obsoleto. Por essa razão há quem prefira o termo anarquismo pós-estruturalista.

As Políticas do Pós-Anarquismo

Saul Newman

Recentemente, a política radical têm enfrentado um sem-número de novos desafios, contando com a reemergência de um Estado agressivo e autoritário em um novo paradigma de segurança e biopolítica. A “guerra contra o terror” funciona como o mais recente disfarce para a reafirmação agressiva do princípio de soberania do Estado, para além dos limites tradicionais impostos a ele pelas instituições legais ou políticas democráticas. Em aliança a isso, há a hegemonia dos projetos neoliberais de globalização do capitalismo, assim como o obscurantismo ideológico da assim chamada Terceira Via. A desilusão profunda que veio com o colapso dos sistemas comunistas há quase duas décadas resultou em um vácuo político e teórico para a esquerda radical, que tem sido em geral inefetiva em suas tentativas de conter a ascensão da extrema direita na Europa, assim como a um ‘conservadorismo rastejante’ cujas implicações ideológicas começam a se determinar.

O momento anarquista

É talvez por causa do desamparo em que se encontra hoje a esquerda que têm havido um novo interesse no anarquismo como alternativa radical ao marxismo. De fato, o anarquismo sempre foi uma espécie de ‘terceira via’ entre o liberalismo e o marxismo, e agora, com o desencanto geral sentido tanto em relação ao liberalismo estilo “livre-mercado’ e o socialismo centralista, o apelo do, ou ao menos o interesse no, anarquismo tende a aumentar. Esse ressurgimento também é devido à proeminência do movimento de anti-globalização (um termo bastante amplo, aliás). Esse é um movimento que contesta a dominação da globalização neoliberal em todas as suas manifestações – da cobiça corporativa à degradação ambiental e os alimentos geneticamente modificados. Baseia-se à volta de um programa de protestos sociais amplo que incorpora uma multitude de preocupações e identidades políticas diferentes. No entanto, o que estamos observando aqui é claramente uma nova forma de política radical – fundamentalmente diferente tanto das políticas particularizadas da identidade que têm prevalecido nas sociedades liberais ocidentais, quanto da antiga política marxista da luta de classes. Por um lado, o movimento anti-globalização une diferentes identidades à volta de uma luta comum; por outro, esse campo em comum não é determinado a priori, ou baseado na prioridade de interesses de uma classe em particular, mas articulado de forma contingente durante a luta em si. O que torna esse movimento radical é sua imprevisibilidade e indeterminância – a forma como ligações e alianças inesperadas são formadas entre diferentes identidades e grupos que, de outra forma, teriam pouco em comum. Ao mesmo tempo em que esse movimento é universal, no sentido de invocar um horizonte emancipativo comum que constitui as identidades dos participantes, ele rejeita a falsa universalidade das lutas marxistas, que negam a diferença e subordinam as outras lutas ao papel central do proletariado – ou, mais precisamente, ao papel vanguardista do Partido.

É essa recusa de políticas centralistas e hierárquicas, essa abertura à pluralidade de identidades e lutas diferentes, que torna o movimento anti-globalização um movimento anarquista. Não é anarquista somente porque os grupos anarquistas são proeminentes nele. O que é mais importante é que o movimento anti-globalização, sem ser conscientemente anarquista, incorpora uma forma anarquista de política em sua estrutura e organização [1] – que é descentralizada, pluralista e democrática – assim como a inclusividade. Da mesma forma que anarquistas clássicos como Bakunin e Kropotkin insistiam, em oposição aos marxistas, que a luta revolucionária não deve ser confinada por interesses classistas do proletariado industrial, e deve ser aberto ao campesinato, ao lúmpen-proletariado, aos intelectuais déclassé, etc., também o movimento contemporâneo inclui uma ampla escala de lutas, identidades e interesses – sindicatos, estudantes, ambientalistas, grupos indígenas, minorias étnicas, ativistas contra a guerra, e por aí vai.

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Dos tiros nos pés

A organização de umas Jornadas Anarquistas e Anarco-sindicalistas no Porto conta com grupos que não existem e “outros colectivos” demasiado envergonhados para colocar o seu nome.

AIT – Secção Portuguesa | SOV.AIT-SP – Porto | CESL (Círculo de Estudos Sociais Libertários) – Porto + outros colectivos e indivíduos libertários

Da minha parte não aceito esta política de expedientes para “parecermos muitos”. Julgo que o caminho a seguir deve ser o da transparência e da credibilidade, porque outras formas de actuar são portas abertas ao autoritarismo, que é o que à partida queremos combater.

Quem somos, de onde vimos e outras dúvidas existenciais

Saíram os resultados do inquérito aos anarquistas. Destaco alguns resultados que me parecem mais importantes, embora não necessariamente surpreendentes. As respostas provêem sobretudo da América do Norte e da Europa, como não seria de deixar de esperar.

> A esmagadora maioria dos que responderam são homens (82%) apesar de o número de mulheres e de homens no global da sociedade ser sensivelmente o mesmo. Muito mau.

> 43,8% são da classe média baixa, 28% da classe trabalhadora e 21% da classe média alta. Como a maioria das respostas vieram da América do Norte (56,6%), nota-se a influência dos que se auto-dominam anarco-capitalistas ao fazerem subir a percentagem da classe média alta (182 descreveram-se como anarco-capitalistas).

> A etiquetagem por correntes deu:

  • Comunista anarquista: 744 (13.2%)
  • Socialista libertário: 591 (10.5%)
  • Anarco-sindicalista: 560 (10%)
  • Não gosto de etiquetas: 510 (9%)
  • Anarquista social: 498 (8.8%)
  • Anarquista sem adjectivos: 495 (8.8%)

A maioria identifica-se com o anarquismo social/socialista/comunista/de esquerda ou com um anarquismo sem etiquetas/adjectivos que foi a minha escolha embora também me identifique com o anarquismo social/socialista/comunista/de esquerda. Não se excluem um ao outro.

> Mais de metade dos participantes acham que o anarco-capitalismo é um problema. Um número significativo acha o mesmo do primitivismo e do sectarismo. Estou de acordo quanto ao anarco-capitalismo e ao sectarismo, embora ache que de uma forma geral os anarquistas são menos sectários do que a esquerda.

> 49,5% acham muito importante que anarquistas de diferentes correntes trabalhem em conjunto. 34,7% acham importante e uma minoria acha pouco ou nada importante. 53% disseram que por vezes poderiam trabalhar com marxistas, 30,6%  disseram que o fariam e 18,5% disseram que não. Acho que são resultados animadores.

> 70% já pertenceram a um partido contra 30% que, como eu, não. Dos que já pertenceram o partido era

  • Marxista: 716
  • Social-democrata: 641
  • Liberal: 594
  • Verdes: 545
  • Libertarianismo de mercado livre: 439 (peculiaridade norte-americana)
  • Trotskista: 236
  • Marxista-leninista: 218

> Quanto à luta que pensam ser a mais importante 57% acham que todas as lutas estão interligadas e 25% referiram a luta de classes. Aparece ainda a destruição ambiental com 8,9% e a libertação nacional/anti-imperialismo com 6%.

> Outra pergunta interessante era sobre a táctica/prática considerada mais útil:

  • Organização comunitária: 1 693
  • Organização laboral: 1 313
  • Desobediência civil: 1 268
  • Escolas livres: 1 071
  • Jardins comunitários: 866
  • Infoshops: 818
  • Protestos: 747
  • Sabotagem: 663
  • Food not bombs: 593
  • Disengagement: 509 (não sei o que isto é)
  • Culture jamming: 488
  • Reclaim the Streets: 426
  • Black blocs: 361
  • Libertação Animal/da terra: 302

O que indica, tal como concluíram os companheiros que realizaram o inquérito, que parece haver a necessidade de uma Diversidade de Tácticas. E aqui entramos na questão da violência.

> 44% disseram que a violência apenas deve ser usada como forma de defesa. 34,5% que a violência, infelizmente, fará parte da revolução. Apenas 16% dizem que a violência é uma parte importante da luta. Uns poucos 5,4% dizem que a violência nunca deve ser usada. A interpretação destes resultados não é muito clara mas se considerarmos aquele “infelizmente” com algum optimismo então podemos dizer que a grande maioria dos anarquistas são avessos à violência.

Princípio social

«Porque é que as pessoas consentem em ser governadas? Não é apenas por medo: o que teriam milhões de pessoas a temer de um pequeno grupo de políticos? É porque elas subscrevem o mesmo princípio que os seus governantes. Mandantes e mandados acreditam da mesma forma no princípio da autoridade, da hierarquia do poder. Estas são as características do princípio político. Os anarquistas, que sempre fizeram a distinção entre o Estado e a sociedade, aderem ao princípio social, que pode ser visto onde quer que o ser humano se ligue a uma associação baseada na necessidade comum ou um interesse comum. “O Estado”, disse o anarquista alemão Gustavo Landauer, “não é um coisa que possa ser destruída por uma revolução, mas é uma condição, um certo relacionamento entre seres humanos, um modo de comportamento humano; destruí-mo-lo contraindo outros relacionamentos, agindo de forma diferente.

Qualquer um percebe que há pelo menos duas formas de organização. Há a que te é imposta, a que é dirigida por cima, e há aquela que é dirigida por baixo, que não te pode forçar a fazer nada, e que és livre de te juntar ou sair quando quiseres. Podemos dizer que os anarquistas são pessoas que querem transformar todas as formas de organização humana no tipo de associação puramente voluntária onde as pessoas podem sair se não gostarem dela e criar uma outra por si próprias.»

Colin Ward, Anarchism as a Theory of Organization, 1966

Colin Ward é um escritor anarquista britânico que faleceu recentemente, a 11 de Fevereiro de 2010.

Objecções anarquistas à Lei e ao Estado

Texto de um livro de Direito destinado a estudantes, sobre a perspectiva anarquista de oposição à Lei e ao Estado.

[…] political philosophers and, in particular, anarchists, have challenged the traditional acceptance by Western cultures of the state and its associated concept of law imposed by a sovereign. Although anarchist thought has never been regarded as “belonging” to legal philosophy, it does in my view offer some interesting contributions to an understanidng of law.

This neglect of anarchist thought is hardly suprising: law is typically regarded by legal theorists as imposing order on a society, while anarchism is frequently associated with chaos and disorder. However, while the “anarchist” label is sometimes adopted by people wishing to reject order altogether, that is not the primary use of the term is political philosophy. Anarchist theory does not reject order as such, but it does reject order imposed on a society by a centralised hierarchical authority such as a state. The political motivations behind this rejection vary considerably between anarchists: broadly speaking, some are libertarians or anarcho-capitalists who see the state as an obstacle to radical individualism or a completely free market; others hold communitarian ideals, and regard the state as a violent institution which creates inequalities between people (through institutions such as private property), which prevents people from taking responsibility for ordering their own communities, which obstructs human potential and mutual co-operation, and which perpetrates more violence and war than it prevents.

Early anarchists tended to identify the concept of law with state-based authority, meaning that their rejection of the state also entailed a rejection of law. For instance, Peter Kropotkin observed that law is seen to be remedy for all evils: “Instead of themselves altering what is bad, people begin by demanding a law to alter it. — A law about fashions, a law about mad dogs, a law about virtue, a law to put a stop to all the vices and all the evils which result from human indolence and cowards.” In placing our reliance on laws given to us by the state, according to Kropotkin, we fail to exercise our own judgement and initiative in ordering our existences, and become subservient to both the law and the state. Reliance on the state prevents us placing reliance on ourselves and from forming co-operative relationships with others. Similarly, Leo Tolstoy, a Christian anarchist, defined laws as “rules, made by people who govern by means of organised violence for non-compliance”. Rather than representing the will of the majority, for Tolstoy, law represents the subjective wishes if a few privileged people, who create laws which server their own interests and protect their private property. Tolstoy argued that the violence of law cannot be justified: if people are irrational and need violence to exist, then everybody must have the right ot use violence, not just the few who have power; if, on the other hand, people were (as he thought) rational, “then their relations should be based on reason, and not on the violence of those who happen to have seized power”.

Any anarchist rejection of law is, however, tied to its rejection of the state. Anarchism does not entail a rejection of law as such, as long as it is possible to disengage the concept of law from the presence of a state. In other words, law may be acceptable, necessary, and even positive for anarchists, as long as it is not arbitrarily imposed by a superior and oppressive institution such as the state. Such a non-state law may be difficult for modern Western lawyers to envisage: after all, our very concept of law tends to assume the existence of state coercion. But anarchists have argued that we do not need to think of laws as a hierarchical institution which forces its subjects into compliance. Nor should law necessarily be regarded merely as a set of rules or static limits. Rather, it might be “a design, an experiment, and a learning process”. More practically, it could be created and enforced by consensus and with the co-operation of all members of a society. Such a law may seem idealistic, impracticable, even impossible. (Though when we think that something is impossible it is important first to remember Foucault’s Chinese encyclopaedia. Is the object impossible, or are we simply limited in our imagination?) Clearly, a greater awareness of the law of non-Western and indigenous cultures has led in recent years to some acceptance of broader concepts of law, which are not based upon the presence of centralised state authority…

Margaret Davies, “Asking the Law Question” (3rd ed, 2008).

retirado do Urban Dissent

Da anarquia ao anarquismo

«Durante dezenas de milhares de anos, os seres humanos viveram em sociedades sem qualquer instituição política formal ou autoridade constituída. Acerca de 6000 anos atrás, pela altura da chamada aurora da civilização, começaram a surgir as primeiras sociedades com estruturas formais de hierarquia, comando, controle e obediência. No início, estas sociedades hierárquicas eram relativamente raras e isoladas principalmente no que é agora a Ásia e o Médio Oriente. Lentamente elas aumentaram de tamanho e influência, usurpando, por vezes conquistando e escravizando as sociedades tribais anárquicas circundantes em que a maioria dos humanos continuava a viver. Por vezes independentemente, por vezes em resposta a pressões de fora, outras sociedades tribais também desenvolviam formas hierárquicas de organização social e política. Ainda assim, antes da era da colonização europeia, grande parte do mundo permanecia essencialmente anárquico, com pessoas em várias partes do mundo a continuar a viver sem instituições formais de governo até o século XIX. Foi apenas no século XX que o globo foi definitivamente dividido em estados nacionais em competição que passaram a reclamar soberania de praticamente todo o planeta.

A ascensão e triunfo da sociedade hierárquica está longe de ter sido pacífica. A guerra e a civilização marcharam sempre de mãos dadas, deixando para trás um rasto de destruição dificilmente concebível para as suas numerosas vítimas, muitas das quais tinham pouca ou nenhuma compreensão das forças alinhadas contra elas e o seu chamado modo de vida primitivo. Foi uma disputa tão desigual como implacável.

Inocentes do que é o governo, tendo vivido sem ele toda a sua vida durante milhares de anos, as pessoas das sociedades anárquicas não tinham a concepção de anarquia como uma forma distinta de viver a vida. Viver sem governantes era algo que eles simplesmente faziam. Consequentemente, o anarquismo, a ideia que viver sem governo é um modo de vida superior, nunca lhes teria ocorrido, faltando-lhes algo com que comparar a anarquia até ao momento em que era tarde demais.

Foi apenas quando surgiram as sociedades hierárquicas que as pessoas dentro delas começaram a conceber a anarquia como uma alternativa séria. Algumas, como os antigos filósofos taoístas na China, olharam para trás para uma idade sem governação, quando as pessoas viviam em paz consigo próprias e com o mundo. Várias seitas cristãs aguardaram com expectativa a segunda vinda, quando o amor igualitário e fraternal de Cristo e dos seus discípulos triunfariam sobre o mal. Racionalistas, como Zeno, fundador do estoicismo na Grécia antiga, e mais tarde os pensadores do Renascença e do Iluminismo, previram uma nova era de luzes, em que a razão poderia substituir a coerção como a principal forma de resolver os assuntos humanos.

Apesar de nenhum destes primeiros defensores da anarquia se tenha descrito a si mesmo como anarquista, o que eles partilhavam era a oposição à autoridade coerciva e relações hierárquicas baseadas no poder, riqueza e privilégio. Em contraste com outros radicais, eles também rejeitavam qualquer papel autoritário ou de privilégio para eles próprios na luta contra a autoridade e na criação de uma sociedade livre.

Encontramos atitudes idênticas entre alguns revolucionários da era moderna. Durante a Revolução Francesa, os enragés e os radicais igualitários opuseram-se às ditaduras e governos revolucionários como sendo uma contradição nos termos, e tentaram abolir todas as distinções hierárquicas, incluindo entre governantes e governados.

Mas foi apenas por volta das revoluções de 1848 na Europa que o anarquismo começou a emergir como uma doutrina distinta.»

Do prefácio de Anarchism: A Documentary History of Libertarian Ideas, Volume One: From Anarchy to Anarchism, de Robert Graham

 

Tácticas para a anarquia

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«No seu livro Anarchisme et changement social, Gaetano Manfredonia faz o delineamento geral das principais tácticas usadas pelos anarquistas na sua luta. Estes pontos são uma síntese realizada por Manuel García, colaborador do portal alasbarricadas.org:

– a confrontação directa (“homens e mulheres de acção”; levantamentos camponeses e operários; luta armada na Ucrânia makhnovista, na Espanha da guerra civil, na luta contra as ditaduras militares na América Latina, …),

– o sindicalismo (intervenção não só no mundo do trabalho mas nas lutas sociais em geral, promovendo a organização horizontal dos de baixo frente à exploração e à opressão),

– a educação (propaganda, criação de escolas populares, de ateneus libertários…)

– a realização (criação no presente, aqui e agora, de espaços libertários que prefigurem a sociedade a que se aspira: cooperativas, comunidades, centros sociais, formas de relação social libertária…).

Um indivíduo, um grupo, uma organização, não têm porque se restringir a uma ou outra táctica e desprezar o resto. Pode-se usá-las simultaneamente e diria, inclusive, que o êxito da nossa acção reside em saber conjugá-las bem, dar-lhes a cada uma a importância devida e fazer uso delas na medida adequada a cada momento.

De facto, é francamente difícil prescindir de alguma das quatro patas da acção anarquista que Manfredonia enumera. Um sindicato, por exemplo, terá que fazer uso de medidas de força, distribuir propaganda pelo resto dos trabalhadores, levar a cabo tarefas de formação de militantes e procurar no funcionamento diário ser uma prefiguração da sociedade libertária.»

retirado de Ordem sem Autoridade

Unidade, Diversidade e Divisionismo no Anarquismo

Unity, Diversity and Divisiveness In Anarchism, no Porcupine Blog

Um aspecto do anarquismo que difere do marxismo socialista é que há menos divisionismo e sectarismo. Isto não quer dizer que não temos os nossos dogmáticos e puristas. Temos, mas essas pessoas são uma minoria, cada vez mais, há medida que o nosso movimento cresce e se vai implantando. Predominantemente, a tendência é que os anarquistas trabalhem em conjunto em projectos mesmo quando pertencem a diferentes tendências, e a não ver os outros como inimigos, traidores ou tolos, apenas porque têm algumas ideias diferentes.

Um exemplo entre tantos: na França, numa terra de 50 milhões de pessoas com 55 milhões de perspectivas politicas, a Alternative Libertaire (AL) e a Federation Anarchist (FA) trabalham em projectos comuns. Nenhum dos grupos perde tempo nos seus media a castigar o outro por erros doutrinários. Isto apesar do facto da AL se ter separado da FA há alguns anos atrás e a primeira ser Plataformista e a FA Sintetista. (1)

Unidade na Diversidade

É possível dividir os anarquistas de diversas formas, “anarquistas estilo-de-vida” e “anarquistas sociais”, é uma possibilidade. Reformistas e revolucionários é outra. Se estas diferenças existem em teoria, na realidade é mais complexo do que isso. Alguém pode-se envolver em várias actividades “estilo-de-vida” mas ser um membro do IWW (Industrial Workers of the World). Outro anarquista pode achar uma revolução impossível no contexto norte-americano mas achar possível noutro lado. Desde que se adira a princípios anarquistas básicos como auto-gestão, anti-capitalismo e anti-estatismo, os anarquistas não acham que a diversidade seja um problema. Quando as pessoas estão dispostas a trabalhar juntas em áreas chave como os média, os sindicatos, organizações comunitárias e reuniões anarquistas, a diversidade torna-se uma força. Os anarquistas estão divididos de muitas formas – tipo de organização escolhida, anarquistas anti-religiosos vs religiosos, tipo de economia futura, e área preferida de actividade. Assim, anarquistas que favorecem uma abordagem mais “individualista” atrairão artistas e poetas para a causa, os anarquistas religiosos são um canal para chegar àqueles que levam a sério as palavras de igualdade dos seus evangelhos e os eco-anarquistas e anarca-feministas ligam-nos aos ambientalistas e movimentos das mulheres.

Existe também um grande número, muitas vezes até mais numeroso que o dos anarquistas ideológicos, de semi-anarquistas. São pessoas que defendem parte, mas não todo o programa anarquista. Estas pessoas dirão que estão interessadas na auto-gestão e no poder popular mas não se consideram anarquistas.
Torna-se então possível, desde que se refreie o dogmatismo, criar um amplo movimento de base. Composto por anarquistas e semi-anarquistas e tendo como base objectivos chave comuns  como a auto-gestão, a democracia directa e a autonomia.
Quando a população trabalhadora começa a agir de acordo com estas ideias, temos o início de uma revolução social.

O que fazer a seguir?

O que os anarquistas deverão fazer a seguir tem sido uma fonte de divisão dentro do movimento. Uma mudança revolucionária pode ser conseguída, mas pode ser mantida? A posição tradicional do anarquismo era de natureza mais espontânea, encorajar as massas a auto-organizar-se e a revolução seguirá o seu rumo. As derrotas anarquistas nas revoluções russa e espanhola levou a que muitos considerassem uma forma mais rígida de programa e organização. Estes são os plataformistas. No início houve animosidade entre os dois grupos, com os tradicionalistas a acusar os plataformistas de autoritarismo e estes a actuar de uma forma muito divisionista dentro do movimento. Mas isto faz parte do passado, e hoje os plataformistas são neo-plataformistas e não são todos sectários, e como mostrado acima trabalham livremente com outros anarquistas. Deve ser notado que a Plataforma não é uma tentativa de formar um partido ou uma organização acima dos outros anarquistas ou trabalhadores. A função da Plataforma é ser uma tendência dentro do movimento mais amplo que influencie esse movimento na direcção de uma maior coerência programática, organizacional e táctica.
1. Sobre a plataforma ver, http://en.wikipedia.org/wiki/Platformism

O anarquismo Sintetista procura unir as diversas tendências anarquistas dentro de uma mesma organização. O seu programa é portanto mais geral e os diferentes grupos que constituem a federação são livres de escolher se apoiam determinada acção ou não.

Desfrutar a beleza, o sol

“Sou anarquista e ser anarquista é ser uma pessoa coerente ( paz espiritual, a tranqüilidade, o campo, trabalhar o menos possível, o suficiente para poder viver, desfrutar a beleza, o sol. Desfrutar da vida com maiúsculas, agora se vive em minúsculas). Ter uma conduta pessoal, Levar as idéias a prática ao máximo, sem esperar que haja uma revolução. Isso se pode fazer agora. É uma concepção filosófica, é um estado de espírito, uma atitude frente a vida. Penso que esta sociedade está muito mal organizada, tanto socialmente, como politicamente, como economicamente. Há que transformar tudo. O anarquismo invoca uma vida completamente diferente. Trata de viver esta utopia um pouco a cada dia”.

Palavras de Abel Paz que faleceu a 13 de Abril. Mais no Café Moçambique.

mescalero

Sobre o anarquismo em Portugal

Uma breve incursão histórica pela acção libertária em Portugal num artigo de Júlio Henriques no Le Monde Diplomatique. Fica a sensação que não houve espaço para mais porque termina abruptamente quando mais interessava ouvir a opinião do companheiro: a actualidade.

“Ao contrário da Espanha (ou da Grécia), o pensamento e as práticas anarquistas não parecem ter deixado em Portugal um lastro profundo. Expressões disso mesmo podemos encontrá-las no facto de a sociedade portuguesa continuar a ser na Europa aquela onde existem as maiores discrepâncias sociais ou no facto, até, de a figura do cidadão não se encontrar instituída nas formas de tratamento, mantendo-se hoje, na democracia formal, as que se institucionalizaram durante a ditadura salazarista, no velho «país dos dótores» que José Cardoso Pires satirizou com verve nos anos 60.

Parece de facto estranho que um movimento político e social que se mostrou tão pujante entre finais do século XIX e os finais da década de 1920, e que constituiu sem dúvida a mais importante corrente revolucionária do movimento operário em Portugal, tenha por assim dizer desaparecido após os anos 30, não se tendo transmitido de forma muito expressiva o seu património filosófico e a sua memória política e social às gerações que actuaram durante os longos anos da ditadura. (Sendo aliás a extraordinária capacidade de duração do Estado Novo um outro elemento porventura revelador da não transmissibilidade do anarquismo nas condições portuguesas.)

Em Portugal, o movimento anarquista foi suplantado no terreno da oposição, a partir dos anos 30, pelo Partido Comunista, criado em 1921 como uma cisão que aliás teve origem nas fileiras do operariado libertário. Essa suplantação ficou a dever-se a várias circunstâncias, a mais importante das quais terá sido o enorme entusiasmo que a Revolução Russa de 1917 despertou também em Portugal e a concomitante «superioridade política» com que esse acontecimento surgiu aos olhos de uma parte dos militantes em luta, tendo em conta que a Revolução Russa apareceu como uma revolução proletária vitoriosa e que em Portugal só ao fim de alguns anos se começaram a ter informações sobre a sua realidade política, ou seja, sobre a concentração do poder nas mãos do partido bolchevique (contrariando o lema libertário «todo o poder aos sovietes») ou sobre a implacável perseguição que esse poder passou a mover à autonomia operária em geral e aos anarquistas em particular.

Nas condições de clandestinidade impostas a qualquer actividade de oposição pelo Estado Novo, a organização que veio a encontrar-se em relativamente melhores condições de subsistir e progredir foi o PCP, devido à sua própria estruturação hierarquizada e de tipo conspirativo e ao facto de poder contar com o apoio de uma importante retaguarda, a URSS. Os anarquistas, além de terem sido grandemente dizimados nos afrontamentos finais do período da I República e do advento do fascismo, não dispunham de uma retaguarda de apoio; e, por outro lado, as suas formas organizativas, de carácter horizontal, não se adequavam às condições da clandestinidade.

Em todo o caso, as organizações anarquistas não puderam manter-se em actividade de modo a transmitirem o seu legado, de forma operacional, às gerações seguintes. E ao mesmo tempo o PCP foi adquirindo um grande ascendente ideológico, com base na sedução exercida pela URSS e nas lutas empreendidas na clandestinidade, o que o levou a tornar-se hegemónico na oposição ao regime fascista, resultando dessa hegemonia, do ponto de vista teórico e da influência ideológica por ele exercida, o quase apagamento da história do anarquismo em Portugal e das perspectivas de uma revolução de características anti-autoritárias assente na autogestão, ou seja, num poder exercido directamente pelos trabalhadores através da expropriação dos capitalistas.

Alguns anarquistas continuaram sem dúvida a tentar levar a cabo diversas acções contra o regime fascista, quer em Portugal quer no estrangeiro, onde muitos deles se exilaram. Dos que actuaram no estrangeiro, é de sublinhar o caso de Edgar Rodrigues, sem dúvida ainda hoje o mais activo historiador do anarquismo português, que no Brasil publicou vários livros de denúncia da ditadura salazarista, um dos quais, A Fome em Portugal (este em parceria com Roberto das Neves), teve bastante repercussão nos anos 60.

Depois do 25 de Abril de 1974, os anarquistas portugueses ressurgiram no terreno público, muitos deles regressados do exílio, abriram sedes, participaram nas lutas sociais e políticas suscitadas pelo golpe de Estado popular, publicaram artigos e livros notáveis. O anarco-sindicalista Emídio Santana, conhecido co-autor do atentado contra Salazar em 1937, foi um dos mais activos. Mas muitos dos militantes libertários eram pessoas já bastante idosas; o contacto com eles foi uma experiência fundamental, quer para o conhecimento directo, em primeira mão, de uma parte essencial da história do movimento operário e anarquista, quer como partilha de uma humanidade rara, de pessoas com uma profunda consciência de classe e que mantinham viva a noção de que a transformação revolucionária deve ter por base a auto-emancipação. Outros, muito mais jovens, ex-refugiados ou exilados como desertores e refractários ao exército colonial, tinham descoberto o anarquismo, em melhores condições de informação, no estrangeiro (inclusive o anarquismo português), sobretudo a partir da grande revolta de Maio de 68.

Mas a verdade é que, apesar da relativa proliferação de grupos e publicações anarquistas após o 25 de Abril, nunca se reconstituiu nenhuma federação libertária com capacidade para intervir a longo prazo na sociedade e com resultados substanciais. Pelo menos até um período recente, o diálogo desses vários grupos afins, susceptível de exprimir um confronto estimulante, revelou-se em geral fraco ou mesmo inexistente, apresentando-se amiúde o anátema mútuo como a única relação possível; repetindo com isso, no fundo, o clima de suspeição sistemática e de concorrência que os grupos de extrema-esquerda levaram à exaustão paranóica e à caricatura nos anos 70.

Tais circunstâncias acabam sempre por ter repercussões doentias, levando os indivíduos e os grupos a assumir características de seitas que se digladiam e a criar formulações e uma linguagem que só podem afastá-los uns dos outros e das próprias realidades circundantes.

Nos últimos anos, no entanto, parece começar a emergir um outro clima, fruto também, possivelmente, das próprias condições que o capitalismo vem forjando no sentido de um aprofundamento do desastre que ele constitui.”

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Anarquismo y Poder Popular

“En efecto, el anarquismo que quiere socializar los medios de producción, también quiere socializar el poder y evitar que éste se convierta en el privilegio de unos pocos. Por eso este movimiento también construye un poder colectivo que surge de las relaciones sociales libres y que sólo se concibe en horizontalidad y diversidad.”

Um texto interessante sobre a relação do anarquismo com o poder, que tanta confusão causa em quem vê a anarquia como a ausência de poder e consequentemente como desordem e confusão. Em vez de se pensar em ausência de poder – essa terrível situação de anomia e caos que tanto medo infunde na mente paranóica e securitária – o que o anarquismo propõe é a socialização do poder. O que pode ser mais atractivo numa forma de organização social do que assegurar o direito a ter voz efectiva nas decisões colectivas e de estar de posse da quota parte de poder que nos corresponde por direito? Para ler o texto completo é seguir a ligação.

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Autogestão e natureza humana

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Uma das objecções mais comuns às formas de organização social que colocam o poder nas mãos das pessoas e não na de uma classe de políticos e burocratas profissionais é a má natureza humana, ou seja, a incapacidade para as pessoas zelarem pelos seus interesses, de se auto-organizarem. Esta perspectiva geralmente parte, segundo me parece, de uma análise falseada das diferentes formas que os seres humanos foram encontrando para organizarem a vida em sociedade, e tem ela própria – a análise – alguns erros que em grande medida a invalidam.

Em primeiro lugar há inúmeras comunidades espalhadas pelo mundo que se autodenominam de igualitárias e em que não há essa classe de políticos e burocratas para gerir os seus destinos. Elas funcionam bem e com longevidade. Aqui o problema apontado está na quantidade de pessoas envolvidas, não são demograficamente representativas, não são constituídas por imensas massas de indivíduos anónimos e descaracterizados. Mas, então o problema seria antes esse, a massificação social, e não a incapacidade para o igualitarismo.

Mas mesmo o argumento demográfico vacila numa análise histórica mais aprofundada. Vou apenas referir o exemplo histórico mais representativo, geograficamente muito próximo, a revolução espanhola de 1936-39. Atente-se no relato do escritor George Orwell no final de Dezembro de 1936, quando tinha acabado de chegar à Catalunha revolucionária.

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Camião de entregas da CNT

“Viera para a Espanha com a vaga ideia de escrever artigos para a imprensa, mas ingressei na milícia quase imediatamente, porque naquele tempo e naquela atmosfera parecia a única coisa imaginável a fazer. Os anarquistas tinham o controle virtual da Catalunha, e a revolução ainda ia de vento em popa. Para qualquer um que estivesse lá desde o começo, provavelmente parecia, já em dezembro ou janeiro, que o período revolucionário estivesse terminando; mas para alguém vindo direto da Inglaterra, o aspecto de Barcelona era algo surpreendente e irresistível. Pela primeira vez na vida encontrava-me numa cidade onde a classe trabalhadora estava no comando. Praticamente todos os prédios, do tamanho que fossem, tinham sido tomados pelos trabalhadores e estavam enfeitados com bandeiras vermelhas ou com a bandeira rubro-negra dos anarquistas; todas as paredes estavam rabiscadas com a foice e o martelo e com as iniciais dos partidos revolucionários; quase todas as igrejas tinham sido pilhadas e as suas imagens queimadas. Igrejas aqui e ali estavam sendo sistematicamente demolidas por bandos de trabalhadores. Todas as lojas e cafés exibiam uma inscrição dizendo que tinham sido coletivizadas; até mesmo os engraxadores tinham sido coletivizados e suas caixas pintadas de vermelho e preto. Garçons e lojistas nos encaravam e nos tratavam de igual para igual. As formas de tratamento servis e até mesmo as de cortesia haviam desaparecido temporariamente. Ninguém dizia “señor” ou “don” ou mesmo “usted”; todo mundo chamava todo mundo de “camarada” e “tu”, e dizia “salud” ao invés de “buenos días”. Uma de minhas primeiras experiências foi levar uma lição do gerente do hotel por tentar oferecer uma gorjeta ao ascensorista. Não havia carros particulares, eles tinham sido confiscados, e todos os autocarros e táxis e a maior parte dos demais meios de transporte tinham sido pintados de vermelho e preto. Os cartazes revolucionários estavam por toda a parte, flamejantes nas paredes com seus vermelhos e azuis vivos, que faziam os poucos anúncios restantes parecerem estuques de lama. Descendo a Ramblas, a larga artéria central da cidade onde multidões fluíam sem parar, de um lado para o outro, altifalantes berravam canções revolucionárias o dia inteiro e noite adentro. E era o aspecto das multidões a coisa mais estranha de todas. Na aparência exterior, era uma cidade em que as classes abastadas tinham praticamente deixado de existir. Exceto por um pequeno número de mulheres e estrangeiros, não havia pessoas “bem vestidas” de jeito nenhum. Praticamente todo mundo usava as roupas rudes da classe trabalhadora, ou macacões azuis, ou alguma variante do uniforme da milícia. Tudo isso era estranho e emocionante. Havia muita coisa que eu não compreendia, e de muitas delas de certa forma nem gostava, mas reconheci imediatamente que era um estado de coisas pelo qual valia a pena lutar. Também acreditava que as coisas eram como pareciam ser, que aquele era realmente um Estado dos trabalhadores e que toda a burguesia tinha fugido, ou sido morta, ou passado voluntariamente para o lado dos trabalhadores; não percebia que muitos dos burgueses abastados estavam simplesmente escondidos e disfarçados de proletários, por enquanto.”

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Igreja convertida em casa do povo

A CNT (Confederação Nacional do Trabalho), de natureza anarco-sindicalista, não só combateu com sucesso, durante algum tempo, os fascistas, como encorajou a ocupação de terras e fábricas, num movimento que envolveu sete milhões de pessoas, incluindo cerca de dois milhões de membros da CNT, pondo as suas ideias de autogestão em prática. Apesar das circunstâncias difíceis tanto as condições de trabalho melhoraram como a produção aumentou.

Toda a industria da Catalunia foi colocada sob a autogestão pelos trabalhadores ou controlada por eles (ou seja, eles assumiram totalmente todos os aspectos da direção no primeiro caso, ou no segundo, colocando a antiga direção sob seu controle). Em alguns casos, as economias dos povos e regiões inteiras se transformaram em federações de coletividades. O exemplo de Alcoy (população de 45 mil) se dá como exemplo típico:

“Tudo era controlado pelos sindicatos. Mas isso não significava que tudo era decidido por uns poucos comitês burocráticos de cima sem consultar aos membros do sindicato. Aqui se praticava a democracia libertaria. Assim como na CNT havia uma dupla estrutura recíproca; desde a base… até acima, e por outro lado uma influencia recíproca desde a federação dessas mesmas unidades locais a todos os níveis até abaixo, desde a fonte e volta à fonte” [Gaston Leval, citado em The Anarchist Collectives, Ed. Sam Dolgoff, p.105].

Na frente social, as organizações anarquistas criaram escolas racionais, um serviço de saúde libertário, centros sociais, etc.

FAQ anarquista: Anarquismo em acção

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Imagem da Wikipédia: bilhete de cinema autogerido

Nas zonas rurais também houve mudanças completas:

em várias localidades o dinheiro foi abolido ou substituído por cupons de consumo. O objetivo era tornar gratuito tudo que fosse possível, e racionar o que não fosse, de forma que ninguém pudesse, por exemplo, adquirir sapatos novos toda a semana, mas que tivesse acesso a um par novo quando precisasse. Essas mudanças eram decididas pelo próprio povo do lugar, jamais impostas de fora. Todas as correntes políticas participavam das assembléias nos vilarejos, e as funções eram delegadas de acordo com a conduta passada de cada um.

Wikipédia

Em termos de movimentos de massas, este é um que não deixa margem para dúvidas sobre a capacidade humana para se autogerir e tomar as rédeas da sua vida pessoal e profissional. Deixo ainda as palavras de um dos mais destacados anarquistas que participou activamente nestes acontecimentos, Buenaventura Durruti.

Mas nós sempre vivemos em cortiços e buracos nas paredes. Saberemos como nos arranjar durante algum tempo. Pois não devem esquecer que também sabemos construir. Fomos nós que construímos os palácios e as cidades na Espanha, na América e em toda a parte. Nós, os operários, saberemos construir outros para tomar o lugar dos que forem destruídos. E ainda melhores. Não temos medo de ruínas. Nós herdaremos a terra.. Quanto a isso não há a menor dúvida. Os burgueses podem fazer explodir e destruir o seu mundo antes de abandonarem o palco da história. Nós trazemos um mundo novo em nossos corações. E esse mundo está crescendo a cada minuto que passa.

Buenaventura Durruti, em entrevista ao jornalista Van Paasen, 1936

A objecção da natureza humana à autogestão tem ainda outros problemas importantes. Um deles é o historial de más experiências que resultam do abuso deste essencialismo, o que deveria ser razão mais do que suficiente para desconfiarmos dele. Afirmar que a essência humana é conflituosa, corruptível, incompetente, maldosa, egoista, seja o que for, simplesmente não tem fundamentos científicos.

É engraçado que a ideia de autogestão é atacada porque supostamente depende de uma natureza humana boa, e que isso é um essencialismo, que essa natureza não existe. Mas os argumentos também se baseiam na existência de uma natureza humana, só que desta vez uma natureza má. É acusar os defensores da autogestão de um erro que se comete na própria crítica.

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Seres humanos em autogestão

Ainda um outro problema na invocação da natureza humana é que parte do princípio que essa natureza humana pode ser controlada e administrada de fora. Esse controlo e essa administração terá de ser feito por seres humanos, por leis e instituições. O que pergunto é, esses indivíduos que estarão na posse do controle social (políticos, juízes, administradores, executivos empresariais, etc.) escapam à sua própria natureza? São inumanos? É que se não for o caso, então o poder de administração e controle que lhes é conferido fará com que se amplie enormemente a sua má natureza, tornando miserável a vida dos controlados e administrados. E as leis e instituições, serão elas o resultado de seres de boa ou de má natureza? Poderão maus humanos fabricar boas leis? Poderão más naturezas fazer funcionar boas instituições? O problema neste argumento é que quando se fala em natureza humana está-se sempre a falar dos outros, dos bandidos, dos corruptos, e não de nós próprios e dos nossos. É um argumento nada democrático e muito pouco solidário.

O argumento da natureza humana minimiza o facto do ser humano ser também um produto social e cultural, e de que esta influência se revela em grande parte determinante. Este factor é demasiado importante para ser ignorado. Sabemos que as sociedades modernas são conflituosas, com guerras constantes, com a violência e a agressividade constantemente em foco, quer nas ruas, em assaltos e desentendimentos, quer nas televisões, nos cinemas, nos jornais, nos jogos de computador, nos brinquedos, na linguagem. É extremamente geradora de tensões a competitividade a que somos obrigados nos trabalhos, nas escolas e nas relações com os próximos. Este estado de conflituosidade e competitividade constante, não potencia, certamente, seres humanos solidários, felizes, expressando as suas melhores capacidades.

Reformar este sistema baseado na desigualdade, na competitividade, na agressividade, no egoísmo, no salve-se quem puder, e, sobretudo, na manutenção de uma elite priveligiada no poder e detentora de uma fatia grande da riqueza, simplesmente não é possível. Estamos a falar das suas estruturas, dos seus alicerces. Não se pode esperar que pessoas que competem por um emprego que lhes é essencial para sobreviver que sejam solidárias uma com a outra. Pode-se é esperar que elas tomem o serviço à sua responsabilidade e o autogiram em conjunto. Mas para isso temos de desmontar o discurso dominante de que elas não serão capazes, que não faz parte da sua “natureza”, se pretendemos que tenham a iniciativa de o fazer.

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Difusão do poder, maioria e consenso

O desejo pela democratização da sociedade, quer na forma de regime de governo, quer na diversidade das relações dentro do corpo social, parte da genuína esperança de que a difusão do poder que antes estava reservado ao soberano, actue na salvaguarda dos interesses da maioria em vez de interesses particulares e, claro, com isso melhore as condições de vida de uma forma geral. O caminho que seguiu este desejo pela difusão do poder trouxe-nos até às modernas democracias de hoje, e ao mesmo tempo ao impasse que é a hegemonia do discurso que esta é a forma de organização política final, porque, nos seus próprios termos, a mais legítima, justa e eficaz.

Será mesmo? A causa que o pensamento libertário vem defendendo há muitas décadas afirma que não. Partindo da ideia radical de que toda a forma de dominação é ilegítima, e de que abdicar do poder político, mesmo que de forma circunscrita, resulta invariavelmente numa relação de dominação, o pensamento libertário levou a ideia original de difusão do poder até ao fim, ou seja, até ao indivíduo, retirando dela todas as ilações que ela contém. O indivíduo passa então a ser o único e legítimo decisor sobre o que a si lhe diz respeito, não o soberano, nem o representante eleito. Onde a democracia coloca a vontade da maioria como decisiva, passa a estar a vontade do indivíduo no seu lugar, onde a democracia oferece a possibilidade de escolher os representantes, passa a estar um processo mais espontâneo ou mais organizado de discussão e decisão por consenso. Deixa de se tratar de tomar decisões sobre quais os programas a cumprir por grupos organizados e profissionalizantes, os partidos políticos – o que é mais uma decisão sobre estratégias gerais de cunho fortemente ideológico do que propriamente o gerir da própria vida – e torna-se no elaborar dos próprios programas de acção, em colaboração com outros indivíduos com o mesmo grau de autonomia.

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Utopia ineficiente

rejoice in inefficiency and rightfully reject the idol-worship of the Ford Factory of political change. Efficiency is the hallmark of modern life in North America: from fast food drive-ins to well-regulated police states. Efficiency is the coin of the realm for soulless structures like the International Monetary Fund and the earth destroying agribusiness industry. The desire to “do more in less time” is not a neutral force in our culture; it is the handmaiden of miserable experts, specialists, and leaders.

In the efficient dystopia that is North America, “Time is Money.” Yet there is never enough time or money for what we really need.

Num texto com alguns anos, o grupo nova-iorquino Curious George Brigade faz o elogio da ineficiência, económica mas essencialmente política, em oposição à sobrevalorização da eficiência na sociedade actual. Partem da premissa que a sociedade capitalista é eficiente, com a sua parafernália de máquinas e técnicas complexas, o que me parece desde logo um erro de análise. Sim, a maximização da eficiência é parte fundamental na conceptualização da sociedade tecnocientífica, industrial e capitalista, é nela que assenta grande parte da crença que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Tudo o resto é desconsiderado porque é julgado muito bonito em teoria mas não funcionando não prática, não sendo eficiente.

Mas o que tem de eficiente a produção maciça de quinquilharia inútil para satisfazer necessidades criadas artificialmente? Nem sequer as necessidades básicas são satisfeitas se pensarmos nos milhões de pobres que há em qualquer um dos países do mundo ocidental. O sistema não é eficiente, quando muito seria mais eficiente que outros, tal como argumentam os seus indefectíveis.

A importância da eficiência numa sociedade é fulcral porque é em seu nome que se abdica de princípios fundamentais como a liberdade ou a igualdade.

Consensus may take more time than voting, but then voting is not as time-efficient as totalitarianism. What little is gained in efficiency is usually at the cost of genuine participation and autonomy. At its very core, consensus demands participation and input from the entire community.

Completamente de acordo. Afirmar que precisamos de um “homem forte que endireite isto” e a crença na inevitabilidade de políticos profissionais numa democracia parlamentar, são graus diferentes de concessão ao valor da eficiência em detrimento da liberdade e da autonomia individual. Ambos contribuem para a diminuição da participação e a sobreposição de uns sobre os outros, de uma minoria sobre a maioria no totalitarismo e da maioria sobre as minorias na democracia.

When consensus works, everyone can participate and all desires are taken into account. We talk of maintaining biodiversity and ethnic diversity, but what about political and tactical diversity? When the voice of every minority, faction, or individual is sacrificed in the name of efficiency, the horizon of our politics shrinks. When people are sidelined, we all lose out.

O importante aqui está logo no início, “Quando o consenso funciona”, porque para funcionar é preciso mais do que o estabelecimento de regras de discussão e decisão.

It takes time to understand people, to develop friendships and trust. It is naive to think that by
proclaiming a platform or points of unity we can develop trust and solidarity with strangers.

Conhecer, compreender as pessoas, estabelecer ligações e afinidades, aprofundar as relações interpessoais, tem de andar a par com a ideia de consenso, colocado ao mesmo nível de importância, transformado em táctica de transformação social. A militância impessoal é própria de funcionários, boa para quem espera cumprir-se a profecia determinista de uma revolução social vindoura, e, lá está, é “eficaz”.

mescalero

Conheça o seu amigável vizinho anarquista

O que esperar de um artigo sobre um grupo anarquista na imprensa corporativa? Desinformação evidentemente. Este, com o simpático nome de Meet your friendly neighborhood anarchists não foge à regra. Para além das, aparentemente, boas intenções do articulista ao descrever as anarquistas como gente amigável, prestável e pacífica, o artigo acaba por subtrair à acção anarquista toda a sua vocação subversiva, ao torná-la “suportável para o cidadão comum”. Não nos enganemos, a anarquia crescerá sobre as ruínas da máquina mais ou menos democrática, capitalista, corporativa, hiper-tecnologica e patriarcal, como uma planta gigante a romper pelo asfalto.

Por isso, a anarquia será amigável concerteza, mas adversária também. Prestável sim, mas com critério anti-autoritário. Construtiva claro, mas ambivalentemente destrutiva.

Fica a ligação para as actividades do grupo anarquista Be your own hero, com Food Not Bombs, Critical Mass, actividades DIY (do it yourself), oficinas várias e comida vegetariana.