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Canteiros galegos e portugueses: face a face

Pelo companheiro galego Eliseo Fernández no Diário Liberdade.

Na década de 90 do século XIX houve uma vaga de conflitos entre operários galegos e portugueses. Naquela altura, existia uma forte mobilização operária em toda a Galiza, estimulada pelas reivindicações da jornada de oito horas na data do 1º de Maio, solenizada no país desde o ano 1890.

As divergências entre operários galegos o portugueses tiveram início no Outono de 1894 na Corunha, atingindo os canteiros que trabalhavam na praça de Maria Pita. Naquela obra, os operários galegos pediram a demissão dalguns portugueses que lá estavam lavrando pedra. O motivo da briga era que os operários portugueses chegados de Viana do Castelo não aderiram as sociedades operárias da cidade e não apoiavam a greve dos operários galegos pedindo aos patrões a subida dos salários. Os canteiros corunheses entrevistaram-se oficialmente com os colegas portugueses para lhes pedir que deixassem de trabalhar, mas não o conseguiram e começaram então os ataques contra os canteiros lusos. Depois de vários incidentes violentos entre os canteiros galegos e portugueses, os operários da Corunha tiveram de abandonar a greve sem conseguir as suas reivindicações.

Em Maio de 1897 houve uma nova greve na Corunha, e desta vez os operários da cidade tiveram a iniciativa de enviar notícia da greve aos jornais operários de Espanha e Portugal para evitar a chegada de fura-greves do país vizinho. Mais o maior conflito daquele período foi em Compostela, onde também os canteiros que trabalhavam nas obras da universidade se declararam em greve a finais de Abril de 1898. Decididos a não permitirem que os fura-greves prejudicassem o movimento, uma multidão congregou-se na estação dos caminhos-de-ferro de Cornes, pois lá estava previsto que chegasse um grupo de 15 operários contratados no próprio Portugal pelo patrão Juan Bouzán, por encomenda da sociedade patronal recentemente criada. À chegada do comboio, os operários grevistas e um numeroso grupo de mulheres começaram a apedrejar os fura-greves, ferindo alguns deles e também um dos patrões que lá fora recolhê-los.

As consequências do incidente da estação de Cornes foram muito graves, pois a polícia deteve vários operários e operárias como supostos autores do ataque aos canteiros portugueses.

Também não foi ganha a greve, e quase um ano depois, houve um juízo contra as pessoas envolvidas na agressão aos portugueses. Vinte e quatro homens e vinte e duas mulheres foram julgadas em Março de 1899, mais o fiscal retirou a acusação contra a maior parte dos réus e só a manteve contra dois homens e duas mulheres; para eles tão só pediu penas de dois meses de cárcere e uma coima de 125 pesetas, respectivamente.

A lição que o operariado galego tirou destas greves foi a de que necessitava estreitar os contactos com as associações operárias portuguesas para interromper a chegada de canteiros do país luso quando na Galiza houvesse greves. Foi no início do século XX quando aqueles contactos chegaram a produzir fruto.

Sobre revolução e contra-revolução

“Muitas pessoas não se apercebem que no passado atravessamos, e continuamos agora a atravessar, um ciclo de revolução e contra-revolução. Este ciclo pode ser dividido em 3 vagas.

Primeira vaga 1910-1936

México, Rússia, Alemanha, Hungria, Espanha, revolução potencial na Itália, revolta na Argentina, Brasil. Greves gerais por todo o mundo.

Segunda vaga 1958-1980

Cuba, França, Portugal, Nicarágua. Revolta na Itália, Argentina, Chile. Greves gerais na Bélgica, Canadá.

Terceira vaga 2000 –

Venezuela, Bolívia, revolta no México, Equador, Argentina, Islândia. Revolta na Grécia, França.

Cada vaga, até à actual, terminou num período de reacção.

1. 1922 – 1957 Fascismo e Estalinismo, seguído de dominação pelo imperialismo norte-americano e contra-revolução.
2. 1973 – 1999 Golpes de estado promovidos pelos EUA no Chile, Argentina, Uruguai, terrorismo na América Central, ataques neoliberais aos padrões de vida e direitos dos trabalhadores por todo o mundo.

As datas são aproximadas e podem ocorrer sobreposições. Além disso, um período revolucionário pode conter triunfos reaccionários e um período de reacção pode assistir à ocorrência de mudanças progressivas ou revolução. Apesar destas limitações, há um ciclo definido de revolução e de reacção contra-revolucionária. A dificuldade em perceber a existência destas longas vagas leva quer ao pessimismo por parte das forças progressistas (discurso sobre a cooptação da classe trabalhadora) quer ao triunfalismo por parte dos reaccionários (o “fim da história”, obsolescência do socialismo).

Há também diferenças entre as vagas revolucionárias. No passado, regimes revolucionários foram instalados ou a contra-revolução triunfou num espaço de meses. Hoje, o processo revolucionário está muito mais prolongado, como vemos na Venezuela e na Bolívia onde uma situação revolucionária tem existido durante anos. Na Argentina, apesar de muita da luta da classe trabalhadora militante desde 2001 ter sido recuperada pelo populismo, a classe como um todo não foi derrotada como foi em 1976. Em certos aspectos houve uma fusão de reforma e revolução.

A segunda diferença é a fraqueza do imperialismo norte-americano. Manietado no Iraque e no Afeganistão, o império estendeu-se excessivamente e depara-se com a hostilidade das populações dos seus supostos aliados. Vê-se incapaz de aterrorizar a América latina e colocá-la “no seu lugar”, como fez a apenas 20 anos atrás. Isto dá ao processo revolucionário tempo e espaço para se desenvolver autonomamente.

A terceira diferença é a severidade da crise económica e o facto de que ela é de facto uma crise tripla – económica/energética e ambiental. O capitalismo nunca antes enfrentou uma crise desta magnitude. Isto limita a sua capacidade de intervenção e traz desassossego aos centros do império.

As hipóteses de sucesso nunca foram maiores. Nunca tanto esteve em jogo. O que acontecerá?”

Larry Gambone no Porcupine blog

mescalero

Sobre o anarquismo em Portugal

Uma breve incursão histórica pela acção libertária em Portugal num artigo de Júlio Henriques no Le Monde Diplomatique. Fica a sensação que não houve espaço para mais porque termina abruptamente quando mais interessava ouvir a opinião do companheiro: a actualidade.

“Ao contrário da Espanha (ou da Grécia), o pensamento e as práticas anarquistas não parecem ter deixado em Portugal um lastro profundo. Expressões disso mesmo podemos encontrá-las no facto de a sociedade portuguesa continuar a ser na Europa aquela onde existem as maiores discrepâncias sociais ou no facto, até, de a figura do cidadão não se encontrar instituída nas formas de tratamento, mantendo-se hoje, na democracia formal, as que se institucionalizaram durante a ditadura salazarista, no velho «país dos dótores» que José Cardoso Pires satirizou com verve nos anos 60.

Parece de facto estranho que um movimento político e social que se mostrou tão pujante entre finais do século XIX e os finais da década de 1920, e que constituiu sem dúvida a mais importante corrente revolucionária do movimento operário em Portugal, tenha por assim dizer desaparecido após os anos 30, não se tendo transmitido de forma muito expressiva o seu património filosófico e a sua memória política e social às gerações que actuaram durante os longos anos da ditadura. (Sendo aliás a extraordinária capacidade de duração do Estado Novo um outro elemento porventura revelador da não transmissibilidade do anarquismo nas condições portuguesas.)

Em Portugal, o movimento anarquista foi suplantado no terreno da oposição, a partir dos anos 30, pelo Partido Comunista, criado em 1921 como uma cisão que aliás teve origem nas fileiras do operariado libertário. Essa suplantação ficou a dever-se a várias circunstâncias, a mais importante das quais terá sido o enorme entusiasmo que a Revolução Russa de 1917 despertou também em Portugal e a concomitante «superioridade política» com que esse acontecimento surgiu aos olhos de uma parte dos militantes em luta, tendo em conta que a Revolução Russa apareceu como uma revolução proletária vitoriosa e que em Portugal só ao fim de alguns anos se começaram a ter informações sobre a sua realidade política, ou seja, sobre a concentração do poder nas mãos do partido bolchevique (contrariando o lema libertário «todo o poder aos sovietes») ou sobre a implacável perseguição que esse poder passou a mover à autonomia operária em geral e aos anarquistas em particular.

Nas condições de clandestinidade impostas a qualquer actividade de oposição pelo Estado Novo, a organização que veio a encontrar-se em relativamente melhores condições de subsistir e progredir foi o PCP, devido à sua própria estruturação hierarquizada e de tipo conspirativo e ao facto de poder contar com o apoio de uma importante retaguarda, a URSS. Os anarquistas, além de terem sido grandemente dizimados nos afrontamentos finais do período da I República e do advento do fascismo, não dispunham de uma retaguarda de apoio; e, por outro lado, as suas formas organizativas, de carácter horizontal, não se adequavam às condições da clandestinidade.

Em todo o caso, as organizações anarquistas não puderam manter-se em actividade de modo a transmitirem o seu legado, de forma operacional, às gerações seguintes. E ao mesmo tempo o PCP foi adquirindo um grande ascendente ideológico, com base na sedução exercida pela URSS e nas lutas empreendidas na clandestinidade, o que o levou a tornar-se hegemónico na oposição ao regime fascista, resultando dessa hegemonia, do ponto de vista teórico e da influência ideológica por ele exercida, o quase apagamento da história do anarquismo em Portugal e das perspectivas de uma revolução de características anti-autoritárias assente na autogestão, ou seja, num poder exercido directamente pelos trabalhadores através da expropriação dos capitalistas.

Alguns anarquistas continuaram sem dúvida a tentar levar a cabo diversas acções contra o regime fascista, quer em Portugal quer no estrangeiro, onde muitos deles se exilaram. Dos que actuaram no estrangeiro, é de sublinhar o caso de Edgar Rodrigues, sem dúvida ainda hoje o mais activo historiador do anarquismo português, que no Brasil publicou vários livros de denúncia da ditadura salazarista, um dos quais, A Fome em Portugal (este em parceria com Roberto das Neves), teve bastante repercussão nos anos 60.

Depois do 25 de Abril de 1974, os anarquistas portugueses ressurgiram no terreno público, muitos deles regressados do exílio, abriram sedes, participaram nas lutas sociais e políticas suscitadas pelo golpe de Estado popular, publicaram artigos e livros notáveis. O anarco-sindicalista Emídio Santana, conhecido co-autor do atentado contra Salazar em 1937, foi um dos mais activos. Mas muitos dos militantes libertários eram pessoas já bastante idosas; o contacto com eles foi uma experiência fundamental, quer para o conhecimento directo, em primeira mão, de uma parte essencial da história do movimento operário e anarquista, quer como partilha de uma humanidade rara, de pessoas com uma profunda consciência de classe e que mantinham viva a noção de que a transformação revolucionária deve ter por base a auto-emancipação. Outros, muito mais jovens, ex-refugiados ou exilados como desertores e refractários ao exército colonial, tinham descoberto o anarquismo, em melhores condições de informação, no estrangeiro (inclusive o anarquismo português), sobretudo a partir da grande revolta de Maio de 68.

Mas a verdade é que, apesar da relativa proliferação de grupos e publicações anarquistas após o 25 de Abril, nunca se reconstituiu nenhuma federação libertária com capacidade para intervir a longo prazo na sociedade e com resultados substanciais. Pelo menos até um período recente, o diálogo desses vários grupos afins, susceptível de exprimir um confronto estimulante, revelou-se em geral fraco ou mesmo inexistente, apresentando-se amiúde o anátema mútuo como a única relação possível; repetindo com isso, no fundo, o clima de suspeição sistemática e de concorrência que os grupos de extrema-esquerda levaram à exaustão paranóica e à caricatura nos anos 70.

Tais circunstâncias acabam sempre por ter repercussões doentias, levando os indivíduos e os grupos a assumir características de seitas que se digladiam e a criar formulações e uma linguagem que só podem afastá-los uns dos outros e das próprias realidades circundantes.

Nos últimos anos, no entanto, parece começar a emergir um outro clima, fruto também, possivelmente, das próprias condições que o capitalismo vem forjando no sentido de um aprofundamento do desastre que ele constitui.”

mescalero

José Correia Pires, um anarquista no Tarrafal

Irene Pimentel escreve no Caminhos da Memória sobre o anarquista José Correia Pires, combatente antifascista que passou pelas prisões do regime incluindo o Tarrafal.

“O fracasso da «greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934», em que participaram conjuntamente anarquistas, republicanos, «reviralhistas» e comunistas marcou o ocaso em Portugal do movimento anarco-sindicalista, desmantelado pela repressão e sem capacidade para sobreviver em condições de clandestinidade. Depois, outras memórias hegemónicas atiraram os anarquistas portugueses para o esquecimento, de onde também devem ser retirados. Este caso é só um entre muitos.”